segunda-feira, 28 de abril de 2014

Festa de aniversário-fernado Sabino

Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa desse mundo:
-Engoli uma tampa de coca-cola
Levantei as mãos para o céu: mais essa agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade.convoquei imediatamente a familia:
- Disse que engoliu uma tampa de coca-cola.
A mãe, os tios, os avós, todos cercavam, nervosos e inquietos. Abre a boca minha filha. Agora não adianta: já engoliu. deve ter arranhado. Mas engoliu como? Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja, não: de coca-cola. pode ter ficado da garganta-urgia que tomássemos uma providência, não ficassemos ali, feito idiotas. Peguei-a no colo: vem cá minha filinha, conta só pra mim: você não engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo?- Engoli sim papai!- Ela afirmava com desição. Consultei o tio, baixinho: o que é que você acha? Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal:
- O que é você engoliu: istou...Ou isto?
- Cuidado que ela engole outra.- Adverti.
- Isto!- E ela apontou com firmeza a parte de metal.
Não tinha dúvida:pronto-socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão.
No hospital, o médico limitou-se a palpar-lhe a barriguinha, cético:
- Doi aqui, minha filha?
Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no pronto-socorro da cidade.
Batemos para o pronto-socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude:
- Vamos já ver isto.
Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosa revelação. Em pouco o médico regressava: Engoliu foi a garrafa
- A garrafa?- Exclamei. Mas, era uma gracinha dele, cujo espírito passava muito ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tam-pa de garrafa! Certamente precisaria operar - não haveria de sair por si mesma.
O médico pôs-se a rir de mim:
- Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado.
- Engoli!- afirmou a menininha.
- Voltei-me para ela:
- Como é que você ainda insiste minha filha?
- Que eu engoli.
- Pensa que engoliu.-emendei
- Isso acontece.- sorriu i médico: - Até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito.
- Pois eu engoli mesmo.- Comentou ela, instransigente.
- Você não pode ter engolido - arrematei já impaciente:- Quer saber mais do que o médico?
- Quero. Eu engoli, e depois desengoli!- Esclareceu ela.
Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva.






Eu escoli essa crônica pois, antes de tomar uma dessisão devemos esclarecer bem as coisas...

A Morte-Laé de Souza

 Nada mais triste doque perder quem se ama. Geralmente, ela acontece aos poucos e a gente sente que pode ocorrer. Dói. Mas, dói menos do que quando vem abruptamente. De qualquer forma, todos estamos sujeitos e, portanto, devemos estar preparados. O coração sempre sem rancor. De bem com a vida e com as pessoas.
 Às vezes, a semente é boa, a terra é fertil, foi bem adubada e começa a florescer, porém, a geada é imensa e poderosa... Mas, a semente pode germinar de novo... e mais forte.


 Que ás vezes não importa o quão forte que apessoa seja algo mais intenso pode a derrubar, e todos nós estamos sujeitos à morte, por isso devemos estar de bem com a vida.

Aptidão - Luís Fernando Verissimo

Abre a porta.entra o senhor pacheco.
 __Bom dia, senhor pacheco. Sente-se, por favor. Temos
uma ótima notícia para o senhor.
 __Sim, senhor.
__Como o senhor deve saber, senhor pacheco, contratamos uma firma de psicomputocratas
para fazer testes de aptidão nos dez mil empregados desta firma. Presisamosnos atualizar. Acompanhar os tempos.
__Sim, senhor.
__Os dez mil testes foram submetidps a um computador, há dois minutos, e os resultados estão aqui. O senhor é o primeiro a ser chamado porque o computador nos forneceu os resultados em rigorosa ordem alfabética.
__Mas o meu nome começa em P.
__Hum, sim, deixa ver. Pacheco. Sim. Deve ser por ordem alfabética do primeiro nome, então. Este computador é de quarta geração. Nunca erra. Como é seu primeiro nome?
__Xisto.
__Bom, isso não tem importãncia. Vamod adiante. Vejo aqui pela sua ficha que o senhor está conosco há vinte e oito anos, Seru Pacheco. Sempre na seção de entorte de frescos. O senhor nunca faltou ao serviço, nunca tirou férias, e já recebeu nosso prêmio de produção, o Alfinete de Alumínio, dezessete vvezes.
__Sim, senhor.
__O senhor começou na seção de entorte de frescos como faxineiro, depois passou a assistente de entortador, depois entortador, e hoje é o chefe de entorte.
__Sim, senhor.
__Me diga uma coisa, senhor Acheco...
__Pacheco.
__Senhor Pacheco. O senhor nunca se sentiu atraído para outra fução, além do entorte de frescoc? Nunca achou que entortar não era bem sua vocação?
__Nunca, não senhor.
__Pois veja só Senhor Pachec. O computador nos revela que a sua verdadeira vocação não é o entorte de frescos e sim o bistoque ded tronas!
__Sim, Senhor.
__O Senhor é um bistocador de tronas nato, segundo o computador. Não é fantástico? E ainda tem gente que critica a tecnologia. O senhor era um homem deslocado no entorte de frescos e não sabia. Se não fosse o teste, nunca ficaria sabendo. Claro que essa situação vai ser corrigida. O senhor, a partir deste minuto, deixa de entortar.
__Sim, senhor.
__Quanto o senhor ganha conosco, Senhor Pacheco, depois de vinte e oito anos? Mil, mil e duzentos?
__Quinhentos, não contando os alfinetes.
__Pois, sim. E sabe quanto ganha um iniciante no bistoque de tronas?Mil e quinhentos! Não é fantástico?
__Sim, senhor.
__Só tem uma coisa, Senhor Pacheco. Nossa firma não trabalha com tronas. Penssando bem, ninguém trabalha com tronas, hoje em dia.
__Olha, tanto faz. Não é mesmo ? Eu estou perfeitamente satisfeito no entorte, falta só vinte anos pra me  aposentar e ...
__Senhor Pacheco, então  a firma gasta um dinheirão para descobrir a sua verdadeira vocação e o senhor quer jogá-la fora?reconheço que o senhor tem sido um chefe de entorte perfeito. Aliás, o computador não aptidão para o entorte. Vai ser um problema substitui-lo. Mas não podemos contestar a tecnologia. O senhor está despedido. Por favor, mande3 entrar o seguinte, por ordem alfabética, o senhor Roque Lins. Psse bem.
__sim, senhor.
Sai o SEnhoR Pacheco. FEcha a porta.


















Auto - Entrevista-Fernando Verissimo

És ciumento?
    Nasci aqui na Bolivia mesmo. Nascer foi a melhor coisa que podia ter acontecido. Eu não seria o que sou hoje se não tivesse nascido. Acho que foi um parto normal. Perguntei para minha mãe mas ela insiste que não estava lá na ocaçião. Desconfiei que havia alguma coisa errada comigo porque papai trazia os amigos para me ver, no berçário, mas apontava para outro bebê. Custei a falar. Durante dois ou três anos, apesar da insistência da familiar, só dizia meu nome, minha patente e meu número de série. Sou de Libra. Minha vida é rigida por Saturno, Urano e, estranhamente, pelo maestro Issac Karabtchevsky.
  
    Já foste beijado?
         Me considero um homem de esquerda. Tenho certeza que meus filhos ainda viverão sob o socialismo. Em paris, ás minhas custas. Eu não tinha entendido o termo "capitalismo selvagem" até que um representante do FMI desceu em Brasilia, pediu que carregassem sua bagagem e um ministro da área econômica disse "Sim, bwana". Não sei se o FMI vai interferir mesmo no país mas quando sua comitiva esteve no Rio um dos seus membros foi visto apontando para o Pão de Açucar e perguntando:'O Cristo Redentor não ficaria melhor ali?" Não entendo por que uma nação inteira deva se sebmeter aos nteresses dos banqueiros internacionais. Eles não são melhores que os banqueiros nacionais. Mas não me tomem por um esquerdista radical. Não sou nenhum Jorginho Guinle.

    Preferes loira ou morena?
        Bem, penso da morte a mesma coisa que penso das multinacionais. Ela está aí, existe, não há como evitá-lá, pode até ser uma coisa boa na medida em que cria empregos, etc.- mas sou contra. Quanto á vida eterna minha preocupação não é se existe ou não, é chegar lá e encontrar os melhores lugares tomados por quem foi primeiro. Os etruscos devem ter todas as coberturas, os fenícios os terrenos do lago e a gente acaba ficando num quarto debaixo de uma escola de dança flamenca, para sempre. Mas sou um materialista agnóstico. Não acredito em nada que eu não possa pegar, apalpar, cheirar ou morder. Não acredito na Luíza Brunet, por exemplo.

    Gostas do Roberto Carlos?
        Acho que não há clima para um golpe, atualmente, no Brasil. Ainda mais no Rio, onde tem chovido muito. O que dá toda vantagem estratégica ao sapo, como se sabe.

    És cínico ou crês no amor?
         Tive uma infância comum, Classe B, fundos. Minha família era tão classe média que tinha 3.2 filhos. Minha primeira experiência sexual foi com uma vizinha mas ela nunca ficou sabendo. Parei de estudar quando decidi que a escola não estava me preparando para o que eu queria: vagabundo. Tudo que aprendi foi a vida que me ensinou. Só não me perguntem a vida de quem. Em dezesseis anos de jornalismo aprendi algumas coisas, como jamais apertar o botão marcado "Tabulador" na maquina de escrever porque desregula tudo. Sou eleitor desde 57, mas não me culpem pelo Jânio. Não fui só eu.

História triste de um Tuim - Rubem Braga

  João-de-barro é um bicho bobo que ninguém pega, embora goste de ficar perto da gente, mas de dentro daquela casa de João-de-barro vinha uma espécie de choro, um chorinho fazendo tuim, tuim, tuim....
A casa estava num galho alto, mas um menino subiu até perto, depois com uma vara de bambu conseguiu tirar a casa sem quebrar e veio baixando até o outro menino apanhar. Dentro, naquele quartinho que fica bem escondido depois do corredor de entrada para o vento não incomodar, havia três filhotes, não de João-de-barro, mas de tuim.
Você conhece, não? De todos esses periquitinhos que tem no Brasil, tuim é capaz de ser menor. Tem bico redondo e rabo curto e é todo verde, mas o macho tem umas penas azuis para enfeitar. Três filhotes, um mais feio que o outro, ainda sem penas, os três chorando.
O menino levou-os para casa, inventou comidinhas para eles, um morreu, outro morreu, ficou um. Geralmente se cria em casa é casal de tuim, especialmente para se apreciar o namorinho deles.
Mas aquele tuim macho foi criado sozinho e, como se diz na roça, criado no dedo. Passava o dia solto, esvoaçando em volta da casa da fazenda, comendo sementinhas de imbaúba. Se aperecia uma visita fazia-se aquela demonstração: era o menino chegar na varanda e gritar para o arvoredo: tuim, tuim, tuim! Às vezes demorava, então a visita achava que aquilo era brincadeira do menino, de repente surgia a ave, vinha certinho pousar no dedo do garoto.
Mas o pai disse: "menino, você está criando muito amor a esse bicho, quero avisar: tuim é acostumado a viver em bando. Esse bichinho se acostuma assim, toda tarde vem procurar sua gaiola para dormir, mas no dia que passar pela fazenda um bando de tuins, adeus. Ou você prende o tuim ou ele vai embora com os outros, mesmo ele estando preso e ouvindo o bando passar, esta arriscado ele morrer de tristeza".
E o menino vivia de ouvido no ar com medo de ouvir bando de tuim.

Foi de manhã, ele estava cantando minhoca para pescar quando viu o bando chegar, não tinha engano: era tuim, tuim, tuim... Todos desceram ali mesmo em mangueiras, mamonas e num bambuzal, dividido em partes. E o seu? Já tinha sumido, estava no meio deles, logo depois todos sumiram para uma roça de arroz, o menino gritava com o dedinho esticado para o tuim voltar, mas nada dele vir.
Só parou de chorar quando o pai chegou a cavalo, soube da coisa e disse: " venha cá". E disse: " o senhor é um homem, estava avisado do que ia acontecer, portanto, não chore mais".
O menino parou de chorar, pois seu pai o havia consolado, mas como doía seu coração! De repente, olhe o tuim na varanda! Foi uma alegria na casa que foi uma beleza, até o pai confessou que ele também estivera muito infeliz com o sumiço do tuim.
Houve quase um conselho de família, quando acabaram as férias: deixar o tuim, levar o tuim para São Paulo? Voltaram para a cidade com o tuim, o menino toda hora dando comidinha a ele na viagem. O pai avisou: "aqui na cidade ele não pode andar solto, é um bicho da roça e se perde, o senhor está avisado".
Aquilo encheu de medo o coração do menino. Fechava as janelas para soltar o tuim dentro de casa, andava com ele no dedo, ele voava pela sala, a mãe e a irmã não aprovavam, o tuim sujava dentro de casa.

Soltar um pouquinho no quintal não devia ser perigo, desde que ficasse perto, se ele quisesse voar para longe era só chamar, que voltava, mas uma vez não voltou.
De casa em casa, o menino foi indagando pelo tuim: "que é tuim?" perguntavam pessoas ignorantes. "Tuim?" Que raiva! Pedia licença para olhar no quintal de cada casa, perdeu a hora de almoçar e ir para a escola, foi para outra rua, para outra.
Teve uma idéia, foi ao armazém de "seu" Perrota: "tem gaiola para vender?" Disseram que tinha. " Venderam alguma gaiola hoje?" Tinham vendido uma para uma casa ali perto.
Foi lá, chorando, disse ao dono da casa: "se não prenderam o meu tuim então por que o senhor comprou gaiola hoje?"
O homem acabou confessando que tinha aparecido um periquitinho verde sim, de rabo curto, não sabia que chamava tuim. Ofereceu comprar, o filho dele gostara tanto, ia ficar desapontado quando voltasse da escola e não achasse mais o bichinho. "Não senhor, o tuim é meu, foi criado por mim".
Voltou para casa com o tuim no dedo.

Pegou uma tesoura: era triste, era uma judiação, mas era preciso, cortou as asinhas, assim o bichinho poderia andar solto no quintal, e nunca mais fugiria.
Depois foi dentro de casa para fazer uma coisa que estava precisando fazer, e, quando voltou para dar comida a seu tuim, viu só algumas penas verdes e as manchas de sangue no cimento. Subiu num caixote para olhar por cima do muro, e ainda viu o vulto de um gato ruivo que sumia.

Acabou-se a triste história do tuim.

Temos que dar valor para tudo, porque não sabemos como as coisas vão mudar, Hoje é  uma realidade, amanha pode ser outra.

Ja Cresci - Laé de Souza

Se a quela tia que voce não ve,faz um tempão ,surege no cenário ,numa visita a mamãe, e vem com aqueles papos "Nossa como cresceu, está uma moçona" (que novidade);"Garanto que já está namorando "(não,Pedro de..."(não toca nesse assunto , que detesto); "( já não chega a bronca do papai ,agora essa );"Dá um beijo aqui na tia. Sentiu minha falta ?" (demais...). Controle-se, porque é por algumas horas apenas , logo ela desaparece de novo . De uma de que tem de estudar ,tranque-se no quarto ou, então, diga que estava de saída e de o fora. Agora, se a mamãe é daquelas que não aceitam comportamento antissocial , segure firme e nada de resposta malcriada, tá bom?

A Arte de Ser Avó- Rachel de Queiroz

  Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...

Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.


E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...

No entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.

Já a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer roquetes, tomar café - café! -, mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com o lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...


Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém, esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!

E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade...

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...

Eu escolhi esta crônica porque mostra o valor que nós netos temo para nossos avós, sempre estão nos apoiando e pedindo se estamos com fome, são uma segunda mãe, não veêm os limites do certo e do errado, e para eles, nós somos uma alegria quando vamos visita-los. 

Ser Brotinho-Paulo Mendes Campos

 Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.

  Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.

  É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível e tão inteligente e natural. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.

  Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.

  É telefonar muito, estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.

  Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.

  É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.

  Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada fala.

  Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.



 Escolhi essa crônica pois mostra que você pode ser uma pessoa mais alegre sem se preocupar com detalhes do dia-dia.

O Enforcado

Estava lendo no onibus O Continente 1,primeira parte da triologia O tempo e o vento, de Érico Verissimo. Lá pela página 194, o narrador fala de uma figueira no qual Bibiana brincava quando criança e onde encontrou enforcado, num dos galhos da árvore, um tal de Inocêncio Carijó.
A cena foi descrita desta maneira: "fora ela a primeira a ver o corpo, de manhãzinha. A princípio pensou que o homem estava brincando de se balançar. Aproximou-se dele e quando lhe viu a cara soltou um grito. Inocêncio estava completamente roxo, de língua de fora e olhos saltados das órbitas".
Nessa parte fechei o livro e comecei a lembrar de um rapaz que conhecia e também se enforcou numa árvore. Não nos víamo há tempo; ele, como eu, tinha nascido em Santa Cruz, e seu pai era amigo do meu. Se não me falha a memória, parece que chegamos a brincar juntos algumas vezes.
Nicolau era um guri quieto, cheio de manias. Minha mãe disse que ele era esquizofrênico. Também contou que ele usava camisas com todos os botões fechados e que não parava de arrumar a cama até que as cobertas estivessem bem esticadas.
Um dia meus pais foram num churrasco no sítio onde o Nicolau morava. Era na primavera de 1988. Quando voltaram, disseram que ele havia se matado. Quem o encontrou fou meu pai, que, após comerem, tinha saído para caminhar e conhecer a propiedade que o amigo comprara a fim de dar um pouco de paz à familía. "O guri, meu filho, tava pendurado e com língua de fora", disse meu pai. "Saí correndo, mas queria não chegar onde os pais dele estavam. Foi uma tristeza tirar o Nico dali", concluiu.
Quando essa lembrança deu uma folga no meu pensamento, olhei pela janela e vi que a parada onde deveria crescer ia fícando para trás. Dei sinal e desembarquei na outra. Vim para casa com a idéia de transformar o que lembrara nesta crônicas, para, depois, abrir novamente o livro e continuar a leitura
 da história que consgrou Érico Verissimo.


A crônica conta a historia de um amigo que foi enforcado tentando continuar a historia de Érico Verissimo

O Pequeno Manual do Grande Manuel-Carlos Heitor Cony

  Anunciava-se como "O Grande Manuel". Era português, alto, parecido com o John Carradine. Vinha pelo meio da tarde, trancava-se no salão de festas com suas malas. O forte dele era um número de bandeiras, bandeiras de todos os clubes e nações, bandeiras de entidades e coisas inexistentes que iam saindo de sua formidável piteira.
  Como, por que e onde o Grande Manuel começou a fazer mágicas são coisas da vida, de maneira geral, e dos mãgicos em especial. Veio de Portugal para plantar batatas não sei onde. À cultura das batatas preferiu a cultura das ilusões: plantava um relógio no vaso, do vaso nascia um ovo, do ovo nascia a pomba. Plantar batatas talvez fosse menos trabalhoso mas as mágicas davam-lhe glória. Não era um Manuel qualquer. Era o Grande Manuel.
  Mas até os grandes Manuéis vivem de coisas pequenas. A dele chamava-se "O Pequeno Manual dos Mágicos". Uma tarde, ele esqueceu o manual numa cadeira, nós pegamos o livrinho, descobrimos os  truques todos. À noite, quando o Grande Manuel dizia: -"Olhem aqui, este guarda-chuva!", nós berrávamos: -"Não é guarda-chuva, é uma espingarda!"
  Nunca mais o Grande Manuel foi contratado para deslumbrar nossos dias de festa. Deveria andar por aí, vendendo suas mágicas pelos cafundós do mundo. Ontem, ao abrir a porta lá de casa, vi o homem. O mesmo jeito de John Carradine, mais velho, o mesmo sotaque. Só não era o Grande Manuel. Era o Manuel dos Santos, técnico da loja que me vendeu um aspirador de pó. Não me reconheceu, eu era um menino no meio de duzentos meninos.
  Examinou o aspirador, abriu a maleta das ferramentas. Vi um livro velho, amarelado, não, não era o pequeno manual e sim a genda dos clientes que precisava visitar. Mesmo assim, temi que ele repetisse o Grande Manuel e transformasse meu aspirador em liqudificador. Temi em vão. Numa época em que somos todos um pouco mágicos, ele pendurou suas chuteiras. Não me cobrou nada, a peça estava na garantia. E nunca entenderá por que lhe dei tão generosa gorgeta pela troca de um parafuso. A ele, que trocava flores em pássaros, perseguindo a gorgeta do aplauso e da glória que brotava de seus dedos encantados.


  Escolhi essa crônica porque ela é uma reflexão sobre o que a sociedade humana às vezes acaba cometendo, no caso, revelar os segredos de outras pessoas e por causa disso destruir a vida do outro.

Um Amor Conquistado (Clarice Lispector)

 Encontrei Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos conversando quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo com o seu tranquilo cachorro puxado pela correia. Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro - poderia, é verdade, ser apenas uma variação individual da raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei o bicho muito cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi. Enquanto isso, o homem calmamente vindo. Calmamente, não; havia uma tensão nele, era uma calma de quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público com o seu bicho. Ivan sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha, vinha de que aquele bicho já não sabia mais quem ele era, e não podia portanto me transmitir uma imagem nítida.
Até que o homem passou perto. Sem sorriso, costas duras, altivamente se expondo - não, nunca foi fácil passar diante da fila humana. Fingia prescindir de admiração ou piedade; mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está protegendo um sonho.
 - Que bicho é esse? - perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: "por que é que você faz isso? que carência é essa que faz você inventar um cachorro? e por que não um cachorro mesmo, então? pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? mas você esmaga uma rosa se apertá-la com força!" Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras, sei que estou esmagando uma rosa, mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio, e é assim que muitas vezes tenho matado o que compreendo. ( Se bem que, glória a Deus, sei mais silêncio que palavras.)
 O homem, sem parar, respondeu curto, embora sem aspereza. E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem Ivan nem eu sorrimos, ninguém na fila riu - esse era o tom, essa era a intuição. Ficamos olhando.
 Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: "mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?" Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas: "que tenho afinal? que me falta? sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia/ que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?" E o homem, o único a poder delivrá-lo da pergunta, esse homem nunca lhe dirá para não perdê-lo para sempre.
 Penso também na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso.
Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Tremo ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati inesperadamente defrontar-se com outro quati, e nele reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu... nós... Bem sei, ele teria direito, quando soubesse, de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser - adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho, tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe ao homem, e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo, é claro


Escolhi essa crônica, pois ela nos mostra que apesar das diferenças, uma pessoa pode amar outra, ou pode amar algo diferente, como um animal! Que apesar das diferenças, podemos amar e aceitar todos como realmente são. E que apesar de sermos diferentes, temos que em primeiro lugar nos aceitar do jeito que somos, e sermos felizes mesmo assim, vivendo e aprendendo do mesmo modo!

Tentação - Clarice Lispector

   Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
   Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
   Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
   Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
   A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
    Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
    Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
   Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
   No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
   Mas ambos eram comprometidos.
   Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
   A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.
   Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
  

    Escolhi esta crônica, porque ela nos mostra como uma garota pode se identificar com um cachorro. Na crônica eles não podem ficar juntos pois o cachorro já tinha dono,  é uma crônica realmente interessante, pois nos mostra como os animais são importantes na vida das pessoas.